A régua do mundo exterior by Cami Cilento
Quando a Rosa, Editora-Chefe e Fundadora do The Lolla, introduziu o assunto desse mês, eu praticamente senti o chão tremer. Explico, há dez anos eu li o tão falado artigo da Anne-Marie Slaughter que ganhou a capa da revista “The Atlantic”com a manchete avassaladora “Porque as mulheres ainda não podem ter tudo” e desde então esse manifesto assombra a minha existência.Perdi as contas de quantas vezes eu reli o tal artigo quando estava na busca do momento ideal para engravidar e ele me causou tantas reações adversas ao longo dos anos que o culpo por ter adiado a minha gravidez mais do que deveria. Ok, é injusto eu culpar a autora pelas minhas dúvidas em relação a “hora certa” de virar mãe, mas o fato é que a incerteza de como a minha carreira seria remodelada pela maternidade e a falta de pessoas modelos que pudessem me inspirar me deixaram em um limbo de indecisão. Fiquei assim paralisada pensando que chegaria um momento em que teria certeza, e esse momento nunca chegou.Aliás o meu medo era tamanho que no dia em que tive de dar a noticia ao meu chefe de que eu estava finalmente grávida (aliás depois de um processo doloroso de FIV) comecei o discurso assim: “Fulano, tenho uma péssima noticia para te dar…”. Lá estava eu, vivendo um dos momentos mais felizes da minha vida, e eu não consegui celebrar aos quatro ventos porque não tinha idéia qual seria o impacto dessa felicidade na minha carreira. E não parei ali, por causa da paúra que eu tinha de “largar o meu trabalho” para sair de licença maternidade (tenho inúmeras amigas que saíram de licença e nunca mais voltaram) trabalhei literalmente até o ultimo segundo possível. Um dia eu conto sobre como entrei em trabalho de parto no escritório e decidi voltar para casa de metrô para buscar a mala da maternidade.Alguém na semana anterior à minha saída para a temida licença me disse: “não tenha medo de sair, 5 meses agora parecem muito, mas a verdade é que nada vai mudar. Você vai voltar e vai parecer que você nunca saiu”. E realmente essa pessoa estava certa: nada de essencial mudou no meu trabalho. A minha equipe tocou todos os projetos e eu sentei 5 meses depois na mesma mesa e simplesmente retomei a minha vida profissional, “no questions asked”.Mas o que essa pessoa não me falou é que era exatamente ali que o real desafio começava. Tola eu de achar que o meu problema era a licença maternidade. Justamente porque nada mudou durante a minha saída, quando eu voltei o mundo continuou exigindo que eu trabalhasse como se nada além disso existisse na minha vida, ao mesmo tempo eu precisava ser mãe como se mais nada existisse também.Ser mulher é um enorme desafio. Ser mãe então é uma caçamba de desafios adicionais. Mesmo com um marido que divide as tarefas e responsabilidades de se criar um pequeno humano, entendo que carrego comigo uma carga mental de preocupações, planejamentos, questões, decisões que superam em muito o peso que ele carrega. Ainda assim não trocaria a minha posição com ele: amo ser mulher e amo ser mãe, com todas as complexidades envolvidas.Eu também entendo o tamanho privilégio que eu tenho de ter um trabalho para voltar após a licença maternidade. Aliás aonde eu vivo só o fato de que eu tive uma e remunerada já é um privilégio por si só. Entendo que uma grande maioria das mulheres não tem as mesmas opções que as minhas ou melhor não tem opção alguma. Ainda assim acho importante conversar sobre o que mudou em minha visão entre a fase em que tinha medo que os filhos “atrapalhariam” a minha carreira e a fase em que estou agora equilibrando a minha carreira e o meu filho lado a lado.Após 3 anos de maternar, dois deles diga-se de passagem durante uma pandemia global, percebi que o grande problema da minha frustração estava na régua do mundo exterior que eu estava impondo na minha vida. Foi ao me questionar o que realmente é importante e o que dou valor que compreendi que a pergunta mais importante a responder é o que é esse “tudo” que eu tanto quero. E foi ao responder isso que finalmente eu reconheci a sabedoria do fato de que talvez eu nem queira ter tudo, não assim tudo junto e misturado, não assim tudo na mesma intensidade, não assim tudo ao mesmo tempo. Ao usar a minha régua interna ao invés da externa eu posso ter tudo o que me importa. E isso apesar de complexo, basta.Em um texto recente eu escrevi sobre o conceito do “bom o bastante” e como acho ele uma ótima ferramenta de equilíbrio. No entanto além dele outra coisa de que eu tenho certeza é que não quero estar em uma prova de corrida de 100 metros. A minha carreira para fazer sentido é um conjunto de plateaus e escaladas. Ao final sei exatamente aonde quero chegar, mas não tenho a urgência em chegar lá. Para mim o caminho é tão importante quanto o destino.Hoje, mais de quatro anos depois da última vez que li o longo manifesto da Anne-Marie de cabo a rabo, decidi que era hora de parar de evitá-lo e reler para ver se algo mudou em mim ou no mundo desde então. Em mim claramente algo mudou: virei mãe e decidi que ao invés de ficar ressentida com um mundo que não foi idealizado para profissionais mulheres, eu iria arregaçar as mangas e tentar fazer alguma diferença. Também acredito que algo mudou no mundo. Vejo mais mulheres a minha volta não mais competindo por “cotas femininas” e sim simplesmente disputando vagas genéricas. Vejo também tantas mães ao meu redor no mercado financeiro quanto também vejo homens questionando o futuro do trabalho e querendo assumir papéis familiares mais participativos.Eu sei, tudo isso é muito lindo e aspiracional, me mantém centrada no que me interessa e tal. Observo que as meninas de vinte anos tem muito mais mulheres em grandes papéis para terem como referência e espero que a minha trajetória também às inspirem a encontrar os seus próprio caminhos. Ainda existem inúmeros desafios para nós mulheres e muitos tetos de vidro para serem quebrados. Porém, eu já vejo um caminho que antes não estava lá. A Anne-Marie e suas constatações não me assustam mais. Sou uma profunda otimista, sou incansável e batalhadora, e sou sem remorso algum uma mulher, mãe, profissional, esposa.