Sobre momentos especiais da vida e amizades inesperadas
Falar simplesmente que amizades são importantes é diminuir o seu impacto na vida das pessoas. Elas são essenciais. Com exceção dos eremitas, socializar faz parte de ser humano e portanto, socializar com quem temos afinidade parece, além de desejável, absolutamente natural. A amizade - diferente dos laços familiares - depende integralmente do esforço pessoal. Não existe uma demanda anterior para que ela se firme entre indivíduos específicos nem um vínculo de sangue para que ela perdure. E, como todo relacionamento saudável, amizades só florescem a partir de uma troca equilibrada. Não há amizade verdadeira que exista por obrigação. Por essas e outras razões, nutro um especial interesse por amizades improváveis.
Amizades improváveis são aquelas que nascem entre pessoas profundamente diferentes, cujas afinidades inexistem ou são mínimas. Ainda assim, por insistência e esforço das partes, a relação se estabelece seja porque as diferenças são na verdade aparentes ou porque elas conseguem, a partir de suas desigualdades, fazer brotar riquezas. Nada mais belo. A literatura e o cinema, em muitos casos, se utilizam dessas relações inverossímeis para destacar as características dos personagens e fazer nascer conflitos. Os exemplos são infindáveis e se estendem desde Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança, até E.T. e o simpático menino Elliott. Não há como não se encantar por combinações tão exóticas.
Dentre histórias de amizades implausíveis, uma das que mais me cativou nos últimos tempos é a relatada por Jordi Sierra i Fabra no livro “Kafka e a Boneca Viajante”. Ainda que a veracidade de tal história não esteja 100% comprovada, ela é tão fascinante que deveria ser alçada ao posto de fábula, caso seja realmente inverídica. O livro baseia-se em relatos de Dora Diamant, à época companheira do famoso escritor tcheco, Franz Kafka. Nenhum registro (anotações, cartas, bilhetes) sobreveio de tais acontecimentos.
Relata Sierra i Fabra que no final de sua vida, Kafka teria vivido uma situação no mínimo inusitada. Um ano antes de sua morte, o escritor estava passeando pelo parque Steglitz, em Berlim e viu uma menina chorando compulsivamente pois não conseguia encontrar, em lugar nenhum, a sua boneca. Para acalmar a garotinha chamada Elsi, Kafka inventou brilhantemente a seguinte história: a boneca não estava perdida, mas viajara, e ele, um ‘carteiro de bonecas’, tinha uma carta em seu poder que lhe entregaria no dia seguinte. Naquela noite, ele escreveu, com toda a sua habilidade e destreza - imaginem que habilidade e destreza! - a primeira de muitas cartas que, durante três semanas, entregou pontualmente à menina, narrando as peripécias da boneca vividas em todos os cantos do mundo. Durante seus encontros, Kafka lia as letras da boneca cuidadosamente escritas com aventuras e conversas, as quais a menina achava adoráveis.
Depois de alguns dias a magia aconteceu. Elsi havia esquecido o brinquedo real que perdera e estava apenas pensando na ficção que lhe foi oferecida em troca. Franz escreveu cada frase dessa história com tantos detalhes e com tanta precisão bem-humorada que tornou a situação da boneca completamente verossímil: a boneca cresceu, foi para a escola, conheceu outras pessoas, chegando a casar-se no final. Nas “cartas" ela sempre tranquilizava a menina do amor que sentia por ela, mas explicava que devido à complicações da vida, suas outras obrigações e interesses a impediam de retornar aos seus braços agora. A essa altura, é claro, a garota não mais sentia tanta falta da boneca. Kafka havia lhe dado algo para ficar no lugar da dor. A menina agora tinha uma história, e quando uma pessoa tem a sorte de viver dentro de uma história, as dores da vida tornam-se bastante suportáveis.
A beleza de toda essa trama encontra-se no fato de que os benefícios dessa relação improvável não fizeram bem apenas a Elsi. Para todos os efeitos, tal história teria ocorrido já no final da vida de Kafka, quando o autor sofria terrivelmente de tuberculose. Os encontros com a menininha e a dedicação com que ele fez nascer essa história lhe trouxeram alívio para alma e envolvimento com algo para além de sua doença. Se Kafka com sua história da boneca viajante, mitigou a dor da perda do brinquedo preferido, Elsi com sua doçura e inocência infantil, amenizou o sofrimento físico de Kafka.
A possibilidade de uma figura como Kafka, escritor complexo que teria sofrido com depressão e ansiedade social durante toda a sua vida, criador de obras como A Metamorfose e O Processo, nutrir laços de amizade com uma garotinha chorosa, me parece algo de surpreendente. Mas as relações humanas tem dessas coisas. E o que fascina é que, para além das aparências físicas, histórias de vida, idade e feitos dos dois personagens, a amizade ali floresceu e transformou cada um deles. Em tempos de mundo polarizado, em que tudo o que se quer é cancelar o diferente, saber que o ser humano é capaz de perpassar desigualdades significativas e fazer uma conexão entre almas, é um bálsamo para o coração.
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