Relato Sobre o Lockdown em Xangai, o Dejà Vu que Ninguém Gostaria de Ter

Se me contassem eu nunca acreditaria que pudesse escrever este tipo de relato novamente. Sim, estamos em lockdown, e daqueles que só a China consegue proporcionar: absoluto, sem poder sair da porta para fora de sua casa e testes todos os dias.

Com as notícias chegando aos quatro cantos do mundo, começo a receber muitas perguntas como: “Oi, qual é a situação por aí?”, “Está tudo bem?” entre outras, com a preocupação de que tudo isso possa ser mais um daqueles filmes-de-terror anunciando o que está por vir. E quando respondo estas questões, eu sempre começo com a frase: Bem, é uma resposta complexa...

Acho complexa, porque adoraria responder de forma a dar uma visão justa, que pudesse abranger a maioria das pessoas, mas é impossível ser porta-voz de sentimentos de tanta gente com experiências e realidades diversas. Se fizer a mesma pergunta para 10 pessoas, vai ouvir 10 respostas diferentes: algumas tranquilas, outras ansiosas e já com planos de deixar o país. A complexidade na resposta é também pelo fato de ser impossível separa-la do contexto, da cultura e política deste país.

Mas conhecê-lo, e sobretudo compreendê-lo, nos deixa mais preparados para o que vem. Longe de concordar ou simplesmente aceitar passivamente, não é disso que se trata. É somente através de um olhar aberto, que conseguimos colocar a resiliência em prática e criar formas de passar pelo inevitável e até esperado, da melhor maneira. 

“Resiliência” na psicologia,  quer dizer a capacidade que cada um tem em lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas. Neste mês em que o nosso tema aqui no Lolla é Why Habits, posso dizer que alguns hábitos são fundamentais neste período, mas outros podem até atrapalhar. O lado positivo é que estamos em vantagem por termos vivenciado um primeiro lockdown: é uma situação já conhecida e saber onde estão nossas fraquezas, acaba sendo um super-poder na hora de estabelecer prioridades e eliminar rotinas que nos aprisionam. 

Para falar melhor sobre estes assuntos e matar um pouco a curiosidade de quem está aí tão longe, separei algumas perguntas que mais recebo. Vou tentar responder, colocando também um pouco mais da minha vivência e olhar de tantos anos morando na China.

Por que vocês estão em lockdown? É uma nova variante?

Desde que a pandemia começou a ser controlada em 2020, a China vem adotando a política do Covid 0, que significa isolamento e quarentena de uma área inteira bastando 1 caso positivo, até que a taxa de novos casos seja igual a zero. Com o aumento do número de pessoas infectadas gerado pela variante Omicron e em uma velocidade inédita, o país se viu forçado a adotar medidas ainda mais restritivas, principalmente em Xangai, onde o número de casos explodiu – os números não se comparam ao visto no Brasil, mas quando o objetivo é zero, 100 casos por dia é motivo de extrema preocupação.

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Isso mesmo, inicialmente, foi a já conhecida variante Omicron que por tantas medidas rigorosas, principalmente nas fronteiras, demorou para chegar aqui. Apenas recentemente já durante o lockdown, é que foi identificada uma nova variante, mas que também apresentou sintomas leves em casos positivos. 

Segundo dados oficiais do governo, até 14 de abril,  88% da população está devidamente vacinada. Mas, dentre os 12% estão em sua maioria idosos acima de 70 anos que não completaram o ciclo de vacinação, que aqui não é obrigatória – vale lembrar que 12% de uma população de 1,4 bilhões, representa muito em números absolutos. 

Como é a rotina de testes?

Aqui em Xangai, fazemos testes todos os dias: mais ou menos a cada dois dias um PCR em tendas instaladas em pontos que atendem um certo perímetro, e nos outros dias, fazemos um self-test com o mesmo kit vendido em farmácias no Brasil. O resultado dos exames são registrados em nosso aplicativo pessoal, inclusive o teste caseiro. Todos os testes são gratuitos, fornecidos pelo governo. 

Já virou rotina ser acordado com o som de um megafone para que que você vá até o local determinado para realizar o PCR, ou com o voluntário do seu condomínio batendo à sua porta para entregar o test-kit. É uma tensão constante, pois sabemos o que irá ocorrer praticamente no dia, além da apreensão em acompanhar os resultados pelo aplicativo. 

O que acontece se você testar positivo?

Serei levada para algum centro de tratamento coletivo. São grandes galpões com camas enfileiradas organizados emergencialmente para isolar uma grande quantidade de pessoas. É possível ver os relatos e vídeos de quem está por lá, alguns bons outros nem tanto. 

No geral, o local é limpo, mas não é possível tomar banho. É distribuído um kit de higiene, com itens básicos como pasta e escova de dente, álcool gel, toalha etc, e as refeições são fornecidas durante todo o período. O governo entende que é de responsabilidade do Estado o controle da pandemia, bem como o tratamento destas pessoas, mal o bem, como puderem. Sobre isso, já imaginam que as discussões nos grupos de estrangeiros são intermináveis. 

Você pode sair para comprar alimentos?

Não, e essa tem sido a principal dificuldade hoje, pois tampouco há tantos supermercados abertos ou serviços de entrega suficientes que atendam a demanda. Imagine que muitas pessoas já estavam confinadas antes do anúncio deste lockdown em massa, por algum caso positivo na mesma comunidade e não puderam se preparar. 

Alguns estabelecimentos estão vendendo caixas fechadas de produtos variados, há também compras coletivas com os moradores do  prédio e ainda a distribuição gratuita de alimentos que o governo divide por distrito. Além da ajuda de vizinhos próximos – muitos são os relatos da solidariedade de outros moradores doando ou trocando alimento.

Em casa, recebemos uma sacola gratuita com vegetais e conseguimos entrega de um supermercado, há alguns dias atrás. Mesmo assim foi uma compra pequena pela falta de estoque de itens básicos como vegetais e leite, por exemplo. 

No nosso prédio foi organizado um grupo no aplicativo chinês, o wechat, que também traduz o que digitamos e facilita a comunicação. Mesmo morando em um prédio baixinho de 5 andares, nunca tivemos contato com os moradores. Cada prédio ou comunidade possui um responsável voluntário que recebe e repassa todas as informações, testes, alimentos etc, vindos da administração do distrito. A nossa é uma senhora, que praticamente voltou à vida com esta ocupação, animadíssima em conversar e saber como estamos. 

Não temos tanta sobra de alimento, mas o suficiente para outros 12 ou 15 dias sabendo repartir. Já estamos fervendo a água para beber, pois não conseguimos comprar. 

Posso dizer que tenho aprendido muito a aproveitar ao máximo cada alimento e distribui-los de forma a ter uma dieta com variedade de nutrientes, e pensando em não faltar para os próximos dias. Sobre este assunto, são muitos aprendizados: a questão do desperdício, comprar o que é realmente essencial, aprender a cozinhar com o que tem disponível, entre outros. Não vou romantizar a escassez, pois apesar da dificuldade, não sabemos o que é realmente não ter o que comer. Mas espero que fique em mim a crítica dos momentos de fartura, para que haja mais consciência.

Quando Xangai estará livre do Lockdown?

A pergunta impossível de ser respondida. O plano inicial era dividir a cidade em duas, parte leste e oeste, com um período de confinamento de 5 dias em cada região entre os dias 28 de março e 05 de abril. Mas como já mencionei, conhecer este país significa calcular alguns desdobramentos possíveis. Assim, nos preparamos para ao menos 20 dias de lockdown, e ao que tudo indica, vamos passar disso.

Algumas áreas estão sendo flexibilizadas, mas as regras continuam bem restritivas: Apenas as pessoas que moram em comunidades que não apresentaram um caso positivo nos últimos 14 dias, é que estão liberadas para circularem na cidade, hoje praticamente “fantasma”. Caso contrário, você espera em confinamento de 7 em 7 dias até alcançar esta difícil meta. 

Nosso prédio, ainda não apareceu em nenhuma listagem oficial e estamos realmente sem saber em que categoria nos classificaram. Enquanto não temos a informação, tomamos nosso café (que, aliás, conseguimos comprar uma reserva na segunda-feira) e esperamos em casa mesmo.

O que você faz manter a paciência e o pensamento positivo?

Priorizo auto-cuidado e pequenos momentos de prazer. Primeiro e inegociável: meus horários são adaptados para me exercitar e para o encontro semanal com minha analista. 

Deixo de lado a dieta restritiva, e tento apenas manter a alimentação equilibrada. Também tenho minhas refeições em momentos pausados e livres do celular. Se não consigo todas, ao menos o café da manhã, ou aquela pausa do café da tarde – sim o café. Já sabemos o quão caótica pode ser a rotina dentro de casa com afazeres domésticos e trabalho, então, procuro justamente ter estes momentos para que eu possa estar inteira em outros que exigem o meu foco.

Aliás, tento entender que minha produtividade muitas vezes não será linear, e nem medida apenas pelo que entrego no trabalho. Ficou aquele aprendizado do primeiro confinamento, quase um mantra: não darei conta de tudo. E essa gentileza comigo mesmo é tranquilizadora.

Espero realmente não ter que fazer outro relato como este, nem eu, nem você. Mas que todos os aprendizados ainda fiquem, assim acumulados, esperando tudo isso passar. E pela experiência que temos, há de passar. 

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