#LollaBookClub: Literatura, Maternidade e os Vários Anseios da Alma Feminina
A maternidade é, sem dúvidas, uma das vivências mais transformadoras que podemos experimentar. Não há como negar que a responsabilidade pela formação e desenvolvimento de outro ser humano é uma tarefa que nos coloca em contato direto com as mais primitivas emoções e os mais intensos sentimentos. Diz uma frase dessas que rolam pela internet que “ser mãe é descobrir forças que você não sabia que tinha e enfrentar medos que você não sabia que existiam”. Ao meu ver é isso e muito mais... É também questionar as nossas maiores convicções, é nos depararmos com nossas limitações e nos aceitarmos falíveis, apesar das melhores intenções. É administrar uma eterna cobrança interna de querer estar em vários lugares e dar conta de absolutamente tudo, sem abrir mão daquela que somos para além do papel de mãe. Maternidade é um balaio de gato de emoções universais e, ao mesmo tempo, profundamente particulares, pessoais e intransferíveis.
E sendo a literatura este campo construído a partir das experiências e sentimentos humanos, não poderia ela ignorar este terremoto existencial que é a maternidade. As mães têm sido o foco de muitas obras de ficção ao longo da história literária. As abordagens são as mais diversas: escritores já as reverenciaram ou confrontaram, as exaltaram ou desprezaram, as rejeitaram ou aceitaram, mas a verdade é que inúmeras páginas foram escritas na tentativa de compreendê-las. A concepção de maternidade passou por diversas mudanças no decorrer dos séculos: desde a convicção de que se trata de um fenômeno inerente à biologia e ao psiquismo feminino, onde ter filhos corresponderia ao ideal máximo da mulher - e praticamente sua única função; até a visão contemporânea onde a importância do papel da mãe parece estar se desconstruindo a ponto das mulheres se sentirem inferiorizadas se - mesmo que por um período da vida - se dedicarem a ser “só mães”. Em nome de um reconhecimento da sociedade e de um ideal de sucesso, há que se querer alcançar tudo, ter tudo. Independente dos custos de saúde física e emocionais. E ainda sorrir no final.
Dentro dessa temática que o Lolla abordou no mês de maio, trago três obras de períodos diferentes que jogam luz nesse dilema que assola tantas mulheres: de como balancear não só a vida profissional, mas também a vida pessoal e o desejo (de algumas) de serem mães.
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1 - Ao Farol, de Virginia Woolf
O "Ao Farol" é uma das grandes obras do século XX, além de um retrato profundamente autobiográfico dos sentimentos de Virginia Woolf em relação à sua própria família. Ao lê-lo, Vanessa Bell, irmã de Woolf, escreveu que "é quase doloroso ter [nossa mãe] ressuscitada dos mortos".
A narrativa de "Ao Farol" acompanha a família Ramsay, uma típica família de classe média na iminência da Primeira Guerra Mundial, enquanto eles passam férias em sua casa de verão no arquipélago de Hébridas, na Escócia. Fluindo dentro e fora das mentes, enquanto refletem sobre um e outro, vamos conhecendo os personagens por meio das percepções pessoais daquilo e daqueles que os rodeiam.
Sra. Ramsay emerge das páginas iniciais do romance não apenas como uma mulher de grande bondade e tolerância, mas também como protetora tanto dos seus oito filhos, como dos amigos e colegas que hospeda em sua casa. É marcante a capacidade da Sra. Ramsay de cuidar e acolher - atributos tão belos da maternidade, mas tantas vezes subestimados. Em contraposição à Sra. Ramsay, temos Lily Briscoe - uma das hóspedes da casa. Observadora, filosófica e independente, Lily é uma pintora que coloca sua arte acima de tudo e vê no casamento uma ameaça ao desenvolvimento do seu potencial e de sua atividade artística.
É importante notar que, apesar de sua aparente limitação, a Sra. Ramsay tem consciência de seu próprio poder e sua postura está longe de ser a de uma mulher vulnerável e submissa. No outro polo, também vemos a devoção que Lily dedica à matriarca, mesmo discordando frontalmente de suas idéias. Ao meu ver, a genialidade da obra de Woolf - e ela não é genial por acaso - reside nas várias camadas e na complexidade de cada uma dessas personagens que, apesar de antagônicas, se complementam e representam essa eterna tensão entre os vários anseios da alma feminina.
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2 - Amor, de Clarice Lispector
Ana, a protagonista do conto “Amor”, de Clarice Lispector, é a típica "Desperate Housewife”, que cuida com esmero da casa, dos filhos e do marido e que diariamente foge da "hora mais perigosa do dia" - aquele momento em que a casa fica em silêncio, que os afazeres foram cumpridos, as demandas externas foram atendidas e ela precisa se deparar com o vazio existencial que insiste em lhe lembrar que há vida (ou deveria haver) para além do ambiente doméstico.
Ana é uma mulher que se perdeu de si, pois ela já não se lembra do seu antigo eu, antes de assumir o posto de esposa/mãe. Mas num corriqueiro trajeto de bonde pelo Rio de Janeiro dos anos 60, Ana tem uma epifania e todas as suas certezas e seguranças são colocadas em xeque. A simples imagem de um cego na calçada mascando chicletes lhe empurra para um mergulho interno e a faz refletir sobre o mecanicismo dos seus atos e a visão estreita com que tem conduzido a sua própria vida. Sem conseguir evitar uma avalanche de pensamentos, Ana vê toda as suas frágeis certezas ruírem como cascas de ovos e é forçada a encarar os questionamentos que vem sendo abafados pelos anos de uma vida premoldada.
Clarice Lispector - sem dúvidas um dos maiores nomes da literatura do nosso país - era uma perspicaz conhecedora da alma feminina e questionadora do papel da mulher na sociedade. A autora nos presenteia com esse conto que funciona como um alerta para que, nesse mergulho profundo e transformador que é a maternidade, não nos percamos de nós mesmas, sob pena de acabarmos vivendo uma vida limitada e limitante.
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3 - A Filha Perdida, de Elena Ferrante
A trama de Elena Ferrante gira em torno de Leda, uma professora universitária, de 47 anos e divorciada. Ela é mãe de duas meninas - agora com vinte e poucos anos - que vivem com o pai no Canadá. De férias, ela parte para alguns dias de descanso em uma pequena cidade costeira no sul da Itália. Mas depois de alguns dias de calma e tranquilidade, as coisas começam a tomar um outro rumo. Leda encontra uma família cuja presença barulhenta se mostra inquietante e sua atenção se volta especialmente para a jovem mãe Nina e sua filha Elena. Rapidamente Leda percebe que, assim como ela, a mulher tem suas questões com a maternidade e com o universo familiar em que está inserida e é a partir desse contato com Nina que Leda irá refletir sobre suas próprias feridas e traumas do passado. Quando ocorre um pequeno evento aparentemente sem sentido, Leda fica sobrecarregada com as lembranças das escolhas difíceis e não convencionais que fez como mãe e suas consequências para ela e sua família. A história aparentemente serena da agradável de redescoberta de si mesma, logo se torna a história de um confronto feroz com um passado de dúvidas, rancores e dores que ficaram por curar.
Apesar de ter algumas ressalvas em relação à obra de Elena Ferrante e considerar a sua protagonista mais rasa e monocromática em comparação às protagonistas das outras duas obras, eu achei interessante apontá-la aqui por se tratar de uma obra contemporânea e apresentar o exemplo da mulher que parte - aquela que abandona a sua família para atender a outros anseios internos e às demandas profissionais, bem como todas as consequências e desdobramentos que advém dessa decisão.