"Ele é a sua cara."

O bebê nasce, você pega ele nos braços e a primeira coisa que pensa é com quem ele se parece. Sua avó olha para ele e logo tenta traçar o paralelo: "ele tem os seus olhos". Sua melhor amiga vem visitar e ela logo fala: "Nossa ele é a cara do pai". E esse jogo de tentar nos reconhecer em nossos rebentos segue por toda a vida.

Há alguns meses postei uma foto com a minha mãe e logo começaram a chover os comentários: "uau! você é a cópia da sua mãe", "meu deus, vocês são iguais" e lógico o meu favorito porque enal­tece o meu ego "que mãe mais linda! você é a cara dela". Passei a minha vida toda ouvindo e tecendo comentários, ou seriam constatações, sobre quem é a cara de quem. Já olho para as filhas das minhas amigas e não resisto: meu cérebro automaticamente começa a escanear as feições de ambas tentando identificar os traços que conheço tão bem.

Quando o meu filho nasceu para a minha surpresa ele se parecia muito com o meu pai. Não que isso fosse um problema, mas era curioso porque ele era a cara do meu pai não criança e sim adulto. Os meses foram se passando e os traços dele foram ganhando mais forma. Logo os cabelos escuros foram caindo e ele foi ganhando uma peruca loira interessantíssima. E foi então que eu finalmente me reconheci.

Eu fui uma daquelas crianças que você vê a foto e não acredita que possa ser a mesma pessoa. Apesar do público geral supor que o meu filho se parece com o pai, já que a mãe não tem loirice nenhuma, a verdade é que meu bebê era a minha cópia quando criança. A minha avó materna automaticamente ficou saudosa de sua loira quando o encontrou da última vez.

Não sei explicar porque me reconhecer nos traços do meu filho me faz tão bem. Só pode ser uma questão egocêntrica. Virou até piada familiar: quando alguém olha a nossa família e começa a procurar as semelhanças, eu já saco uma foto minha na idade do meu filho e pronto, a discussão termina ali. Nesse processo, eu fico orgulhosa pela minha genética e meu marido fica incomodado com a minha assertividade em querer tirar qualquer possibilidade de alguém dizer que nossa criança é a cara dele.

A gente se prende na noção física do que somos ou fomos, mas esquecemos que a parte mais intere­ssante da nossa existência é a nossa personalidade. As melhores partes da minha personalidade são também as mais complicadas. Estaria lindo se ele tivesse a apenas me puxado nos traços externos, mas ficou um pouco mais complexo como mãe me enxergar na personalidade dele. Eu sou uma pessoa extremamente persistente. É fantástico quando a persistência é vista como uma virtude, porém delicado quando o que encontro é a teimosia. 

Quando coloco uma idéia na cabeça é muito improvável que eu vá mudar de opinião. Essa característica me ajuda demais quando tenho razão ou quando tal assertividade me leva a tomar decisões rápidas e certeiras. Veja bem, eu sou uma pessoa muito decidida: dificilmente eu fico perdida sem saber que caminho tomar. Eu escolho e pronto. Por outro lado a minha cabeça dura também me traz diversos problemas. Lógico que a medida que eu amadureci aprendi que ter o comprometimento de ouvir o outro com intenção é uma virtude e um dos meus maiores desafios é desenvolver a minha capacidade de empatia e compreen­são.

A verdade é que sempre fui considerada dentro da família como uma pessoa difícil. ser difícil é um traço de personalidade no mínimo interessante. Converso muito com uma das minhas grandes amigas sobre o assunto. Tudo começou quando ela me disse que sua filha era difícil. Eu logo me identifiquei e me lembrei de como ser taxada assim é complicado. Rótulos são algo que carregamos para a vida e esse é especialmente desafiador. Abrir esse diálogo com a minha amiga foi profundamente transformador.

Certo dia em um dos nossos papos ela me disse o seguinte: “ela como filha é um desafio diário e minha maior luta. Ela como mulher eu vou só sentar e aplaudir”. Na mesma hora pensei na minha mãe: a minha persistência, resiliência e espírito batalhador realmente são marcantes e definidores da minha trajetória como mulher e profissional. Porém a minha teimosia, falta de flexibilidade e cegueira seletiva me empobrecem e fazem dos meus relacionamentos familiares um embate. Lembram o que escrevi sobre a minha maior virtude de ser também a minha maior falha? O que me lembra de uma célebre frase do meu pai sobre a minha avó paterna: "sua avó para uso externo é maravilhosa, para uso interno é complicada”. Bem, essa sou eu e meu marido não titubeou a adotar a tal frase.

Eis que meu filho nessa semana decide que não quer dormir com a calça do pijama. Qualquer argumento ou suborno de nada adiantaram. Não me entendam mal, ele certamente não vai morrer se dormir sem calça e no havia nada de errado com dita cuja. Meu coração de mãe porém não quer que ele passe frio a noite e começa assim o nosso cabo de guerra. Até que a minha mente criativa e prática para resolução de conflitos me fez sacar do armário outra calça. Meu filho olhou para mim, vestiu a calça, sorriu e eu li nos olhos dele exatamente o que ele estava pensando: "te falei que não ia vestir aquela calça e realmente não vesti". 

É um exemplo simples e inofensivo, para alguns vai parecer apenas mais um vai e vem normal entre os pais e os seus rebentos. Porém eu conheço o meu pequeno e me reconheço nele em coisas que vão além da nossa semelhança física quando criança. E sinto por mim e por ele: ser mãe dele vai ser sempre a realização de um sonho, mas reconhecer nele a minha marcante teimosia vai ser sempre um grande desafio. O que ele não sabe é que tudo o que ele é teimoso, eu sou persistente, e assim vamos nessa dança aonde eu acho que ele fez o que eu pedi e ele pensa que fez o que queria.

Além da minha teimosia e da minha persistência, ele também herdou o meu mau humor matinal. Quem teve o azar de estar ao meu redor quando tudo o que eu queria era estar na cama já imagina o tamanho do desafio. O lado positivo de tudo isso é enxergar nele características que enchem meu coração de felicidade. Para a sorte do mundo, ele puxou a empatia e o coração nobre do meu marido. São dois dos traços que mais admiro em ambos e muito melhor herdar isso do que o par de olhos azuis do meu marido ou os meus cabelos loiros quando criança. O meu maior desafio como mãe, mais do que ter certeza que ele tem escovado o dente ou usado filtro solar, será ensinar para eles as lições que aprendi com as enrascadas em que me meti por causa dos traços não tão lindos da minha personalidade.

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